Para ser o 100º filme comentado pelo blog escolhi uma produção nacional que andou perdida por décadas e hoje é referência obrigatória para aqueles que desejam entender melhor o cinema. Antes de falar sobre Limite, abro aspas para o crítico Jaime Biaggio, que trabalhou por seis anos em O Globo e fala sobre esse longa no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer (mais pra frente essa lista será publicada aqui também) e que me motivou a assisti-lo:
"Único filme dirigido por Mário Peixoto (apesar de não lhe terem faltado ideias e projetos inacabados), Limite é uma verdadeira lenda do cinema brasileiro. E, como ocorre com as lendas, mais gente ouviu falar dele e/ou bateu os olhos em alguma foto de seus personagens num bote mirando o mar do que efetivamente chegou a vê-lo. Rodado em 1930 e exibido pela primeira vez no ano seguinte, no Cinema Capitólio, no Rio de Janeiro, foi aclamado pela crítica como obra de vanguarda, mas não chegou ao circuito comercial, sendo incompreendido pelo público (a narrativa era elíptica, sua lógica mais sensorial do que cartesiana). Houve exibições em Londres e Paris, mas, no Brasil, o filme só seria visto esporadicamente nos anos 40 e 50. Nas duas décadas seguintes desapareceu totalmente de circulação, pois os negativos originais necessitaram de um longo trabalho de restauração (nota do blog: sobre essa restauração leia mais após os meus comentários).
No entanto, quando o filme chegou novamente ao público, em VHS, nos anos 80, a lenda estava criada. Orson Welles o teria visto em sua passagem pelo Brasil, em 1942. Sergei Eisenstein o teria assistido em Londres, no início dos anos 30, e escrito um texto entusiasmado sobre o cinema inovador da América do Sul. Essa última história, a principal peça do folclore associada ao filme, se revelaria falsa. Hoje se sabe que aquele texto, divulgado na época por Peixoto como se tivesse sido publicado na prestigiosa revista Tatler, era na verdade da autoria dele mesmo. Não houve, contudo, qualquer conotação de 'desmascaramento' atribuída à descoberta da mentira, pois novas gerações de críticos e estudiosos já haviam adotado o filme, a despeito do desconhecimento do cineasta russo. Mas a quase total ausência de diálogos, com a justaposição poética de imagens aparentemente desconexas servindo como único guia da trama, apontava para um parentesco real com o cinema de Eisenstein. A moral da história, na visão dos fãs, parece ser que ele pode não ter escrito o texto, mas deveria tê-lo feito. À margem de todas as interpretações resta o filme, incompleto (há trechos que se perderam) e ainda pouco visto. Dois homens, uma mulher, um barco, o oceano, uma trilha sonora de música clássica, algumas sugestões de histórias passadas. Ao redor deles, tudo o que o espectador quiser enxergar. (1001 Filmes para Ver Antes de Morrer / editor Steven Ray Schneider - tradução de Carlos Irineu da Costa, Fabiano Morais e Lívia Almeida - Rio de Janeiro: Sextante, 2008, pg. 85)".
Capa de revista francesa que inspirou Mario Peixoto (essa imagem é reproduzida no início e no fim de Limite por uma das personagens)."Único filme dirigido por Mário Peixoto (apesar de não lhe terem faltado ideias e projetos inacabados), Limite é uma verdadeira lenda do cinema brasileiro. E, como ocorre com as lendas, mais gente ouviu falar dele e/ou bateu os olhos em alguma foto de seus personagens num bote mirando o mar do que efetivamente chegou a vê-lo. Rodado em 1930 e exibido pela primeira vez no ano seguinte, no Cinema Capitólio, no Rio de Janeiro, foi aclamado pela crítica como obra de vanguarda, mas não chegou ao circuito comercial, sendo incompreendido pelo público (a narrativa era elíptica, sua lógica mais sensorial do que cartesiana). Houve exibições em Londres e Paris, mas, no Brasil, o filme só seria visto esporadicamente nos anos 40 e 50. Nas duas décadas seguintes desapareceu totalmente de circulação, pois os negativos originais necessitaram de um longo trabalho de restauração (nota do blog: sobre essa restauração leia mais após os meus comentários).
No entanto, quando o filme chegou novamente ao público, em VHS, nos anos 80, a lenda estava criada. Orson Welles o teria visto em sua passagem pelo Brasil, em 1942. Sergei Eisenstein o teria assistido em Londres, no início dos anos 30, e escrito um texto entusiasmado sobre o cinema inovador da América do Sul. Essa última história, a principal peça do folclore associada ao filme, se revelaria falsa. Hoje se sabe que aquele texto, divulgado na época por Peixoto como se tivesse sido publicado na prestigiosa revista Tatler, era na verdade da autoria dele mesmo. Não houve, contudo, qualquer conotação de 'desmascaramento' atribuída à descoberta da mentira, pois novas gerações de críticos e estudiosos já haviam adotado o filme, a despeito do desconhecimento do cineasta russo. Mas a quase total ausência de diálogos, com a justaposição poética de imagens aparentemente desconexas servindo como único guia da trama, apontava para um parentesco real com o cinema de Eisenstein. A moral da história, na visão dos fãs, parece ser que ele pode não ter escrito o texto, mas deveria tê-lo feito. À margem de todas as interpretações resta o filme, incompleto (há trechos que se perderam) e ainda pouco visto. Dois homens, uma mulher, um barco, o oceano, uma trilha sonora de música clássica, algumas sugestões de histórias passadas. Ao redor deles, tudo o que o espectador quiser enxergar. (1001 Filmes para Ver Antes de Morrer / editor Steven Ray Schneider - tradução de Carlos Irineu da Costa, Fabiano Morais e Lívia Almeida - Rio de Janeiro: Sextante, 2008, pg. 85)".
Estreia - 17/5/1931 - Dito isso, vamos às minhas observações sobre Limite, conhecido por alguns como Um Cão Andaluz (1929) da América Latina. Primeiro, a discussão acerca do nome. A intenção de Mario Peixoto (filho de pais ricos e que estudou artes na Europa) era aproximar personagens e espectadores aos seus limites, creio eu. A trilha, toda com música clássica (e ressincronizada à época da restauração) é linda e sem ela o longa seria ainda mais difícil do que ela já é. As cenas soltas, como urubus voando, a mulher algemada, close dos olhos, são explicadas ao longo do tempo.
Por não utilizar palavras, o filme não foge da excessiva contemplação e os três atores demonstram a solidão e a tristeza nas suas interpretações. Depois de dez minutos de uma poesia cinematográfica, Peixoto começa a contar a primeira história, mostrando uma fugitiva caminhando pela estrada e, no flashback do flashback, chegando à cumplicidade do carcereiro. Quando a trama volta para o barco algumas imagens que mal conseguiram ser restauradas se mostram numa qualidade ruim, como se o negativo tivesse podre - até chegarmos ao tal trecho perdido, com pouco mais de vinte e cinco minutos.
A história do homem é um pouco mais dinâmica mas há momentos em que nem todas as intenções são perdidas. Sei que é uma obra aberta e interpretar Limite é uma coisa muito pessoal, mas mesmo a beleza dele sendo a necessidade de dar um entendimento a todas as cenas, há partes em que o espectador cansa um pouco desse surrealismo. Meus momentos preferidos são aqueles em que o diretor brinca com as imagens, fazendo um jogo que não seria possível no cinema falado.
Um exemplo da poesia do filme é a parte em que Peixoto mostra que o homem perdeu sua mulher, mostrando várias vezes duas linhas de pegadas na praia para depois mostrar apenas uma - aliás, são longos minutos em que o personagem apenas caminha e cuida da esposa. Apesar de ser muito contemplativo, gosto de Limite por ser vanguardista, ter muita qualidade técnica e por se concentrar nas pessoas, com histórias interessantes. Visto de longe e de maneira rasa o longa me lembrou o conceito da famosa "nau dos insensatos" (e não apenas o filme de 1965 - sobre esse eu falo outro dia), mas a ideia de passageiros perturbados (no caso de Limite até transtornados) que vagam sem direção, não se importando muito pro lugar aonde chegarão.
Mario Peixoto faleceu em 1992 aos 84 anos. Na década de 1980 ele recebeu ajuda de Walter Salles, que além de diretor é apaixonado por cinema. Mesmo realizando Limite com 21 anos, Peixoto nunca terminou outro longa. Imagina como ele poderia ter feito muito mais para o cinema brasileiro com sua mente experimental. Nota 9
A primeira restauração de Limite foi iniciada em 1959 e finalizada em 1978. Clicando aqui você lê uma reportagem do Jornal da PUC com uma entrevista com um dos restauradores. Foi exibido em Cannes em 2007 e a cantora Adriana Calcanhotto, outra fã do longa, compôs a canção O Mocho e a Gatinha (para crianças) fazendo referência a algumas cenas. Para quem se interessar o filme tem passado no Canal Brasil com alguma frequência e não faltam blogs sobre cinema que falam muito mais sobre essa produção. Esse aqui é apenas um grão de areia na praia.
Filmes comentados em 2009: 100
Filmes lançados em 2009: 31
Total de filmes do blog: 100
Por não utilizar palavras, o filme não foge da excessiva contemplação e os três atores demonstram a solidão e a tristeza nas suas interpretações. Depois de dez minutos de uma poesia cinematográfica, Peixoto começa a contar a primeira história, mostrando uma fugitiva caminhando pela estrada e, no flashback do flashback, chegando à cumplicidade do carcereiro. Quando a trama volta para o barco algumas imagens que mal conseguiram ser restauradas se mostram numa qualidade ruim, como se o negativo tivesse podre - até chegarmos ao tal trecho perdido, com pouco mais de vinte e cinco minutos.
A história do homem é um pouco mais dinâmica mas há momentos em que nem todas as intenções são perdidas. Sei que é uma obra aberta e interpretar Limite é uma coisa muito pessoal, mas mesmo a beleza dele sendo a necessidade de dar um entendimento a todas as cenas, há partes em que o espectador cansa um pouco desse surrealismo. Meus momentos preferidos são aqueles em que o diretor brinca com as imagens, fazendo um jogo que não seria possível no cinema falado.
Um exemplo da poesia do filme é a parte em que Peixoto mostra que o homem perdeu sua mulher, mostrando várias vezes duas linhas de pegadas na praia para depois mostrar apenas uma - aliás, são longos minutos em que o personagem apenas caminha e cuida da esposa. Apesar de ser muito contemplativo, gosto de Limite por ser vanguardista, ter muita qualidade técnica e por se concentrar nas pessoas, com histórias interessantes. Visto de longe e de maneira rasa o longa me lembrou o conceito da famosa "nau dos insensatos" (e não apenas o filme de 1965 - sobre esse eu falo outro dia), mas a ideia de passageiros perturbados (no caso de Limite até transtornados) que vagam sem direção, não se importando muito pro lugar aonde chegarão.
Mario Peixoto faleceu em 1992 aos 84 anos. Na década de 1980 ele recebeu ajuda de Walter Salles, que além de diretor é apaixonado por cinema. Mesmo realizando Limite com 21 anos, Peixoto nunca terminou outro longa. Imagina como ele poderia ter feito muito mais para o cinema brasileiro com sua mente experimental. Nota 9
A primeira restauração de Limite foi iniciada em 1959 e finalizada em 1978. Clicando aqui você lê uma reportagem do Jornal da PUC com uma entrevista com um dos restauradores. Foi exibido em Cannes em 2007 e a cantora Adriana Calcanhotto, outra fã do longa, compôs a canção O Mocho e a Gatinha (para crianças) fazendo referência a algumas cenas. Para quem se interessar o filme tem passado no Canal Brasil com alguma frequência e não faltam blogs sobre cinema que falam muito mais sobre essa produção. Esse aqui é apenas um grão de areia na praia.
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